Charlize - Episódio 1x1 - Eu não sou a única

ㅤㅤ Sobre a cabeceira, algo se moveu produzindo um som agudo que acordaria a qualquer um que ousasse estar próximo. A emissão do barulho que o despertador produziu atingiu os ouvidos de Charlize e a fez saltar do doce mundo dos sonhos, um em que se sentia maravilhosamente bem, para a hipocrisia da realidade.
ㅤㅤ Os seus olhos não pesaram, como de costume. A adolescente não encontrou nenhuma dificuldade para deixar os seus olhos bem abertos para a clareza que seu quarto reluzia. Na pequena extremidade sul a sua escrivaninha de marfim apresentou-se escondida em meio a dezenas de caixas de mudanças, onde objetos escolares, peças de roupas sujas e aparelhos domésticos saltavam para fora por estarem tão cheias. O seu guarda roupa não foi nenhuma exceção; as portas deslizáveis estavam abertas e exibiam a confusão de roupas e objetos eletrônicos enrolados como se fossem um só, parecendo se tornarem algum tipo de objeto desconhecido. Ao enviar um rápido comando aos seus olhos, que não hesitaram em obedecê-la, Charlize viu-se numa repleta emudeci. Sua mãe a obrigaria a organizar todos aqueles objetos em peças de roupa com uma mão apenas; poderia até imaginar o trabalho que teria. Mas Charlize tinha os seus próprios modos e este sempre se mostrou bem eficaz diante de certas situações.
Para não perder a prática, ela bocejou. Um gesto que durou longos segundos, tempo o suficiente para dispersar a sua preguiça. Os seus braços se ergueram por alguns instantes e logo desabaram sobre aquele colchão macio; deu algumas apalpadas para que desfrutasse da maciez. Por último, um suspiro soou por todo o quarto, e aquele movimento pareceu surtir efeito em praticamente tudo a sua volta.
ㅤㅤ Deu-se inicio ao seu processo eficaz e prático.
ㅤㅤ Os seus pensamentos pareceram ficar mais soltos e leves, como se fossem plumas pousando em seus cabelos; os seus problemas do dia-a-dia já não pesavam mais tanto assim. Não como antes. E, então, as roupas antes entrelaçadas e enroscadas nos objetos eletrônicos se soltaram como se algo ou alguma coisa invisível os soltassem, mas as ordens vieram da cabeça de Charlize, de seus mais profundos pensamentos. De seu “ser”.
ㅤㅤ A porta do guarda-roupa deslizou, dessa vez para fechá-lo, e assim manter pressas as roupas dentro de seu móvel. Os objetos permaneceram flutuando no ar; a primeira vista podia-se jurar que linhas invisíveis de nylon estariam a segura-las, mas a força dos pensamentos de Charlize desmentiam aquela hipótese. As caixas de mudanças, que foram colocadas em seu quarto na noite passada, começaram a se movimentar e dispararam para um canto vazio do quarto, assim se colocando uma sobre a outra e formando pequenas pilhas que, por cautela e raciocínio, estabeleceram um ótimo equilíbrio.
ㅤㅤ A escrivaninha finalmente se apresentou ao se livrar daquelas caixas de mudança; sobre ela se mantinha um laptop branco com uma aparência antiquada, se deparavam arranhões em sua superfície, marca de dedos sobre a tela e as letras desenhadas nos teclados pareciam invisíveis ao estado em que se encontravam.
ㅤㅤ Charlize sorriu, apenas. Ordenou que os objetos eletrônicos se posicionassem sobre a escrivaninha e assim eles a obedeceram como ótimos servos. Por algum momento, uma ligeira questão de tempo, a adolescente permaneceu com os olhos fechados; a sensação de poder que sentia dentro dela parecia querer se expelir para fora do seu corpo, a ponto de destruir completamente tudo a sua volta. Charlize se concentrou e manteve aquele desejo ali dentro, aprisionado. Suspirou, agora sentindo-se livre daquela sensação, e saltou de seu colchão, pondo a amostra o seu pijama rendado de um tom roxo púrpuro. Dirigiu-se até o espelho em seguida, em que suas vistas receberam imagens de seus longos cabelos negros despenteados. Se não conhecesse a si mesmo, Charlize poderia jurar que levaria um susto naquele momento, mas, como era de costume levantar com o aquele naquele estado, ela simplesmente deu de ombros, sem se importar com a situação.
ㅤㅤ O que a deixou escalpelada, foi o fato de avistar cadernos e livros posicionados ao lado do guarda roupa. É o primeiro dia de aula, sussurrou para si mesma, num desanimo bem notável pela sua expressão decaída e o rosto flácido.

ㅤㅤ Da cozinha, pode-se ouvir claramente o som de passos lentos e fortes descendo as escadas, e a mãe de Charlize, Vera, contestou que o começo daquela manhã não estaria a alegrar a sua única filha.
ㅤㅤ Vera esperou paciente a chegada de sua filha a cozinha, que, com certeza, não seria nada triunfal e sim desanimador, a ponto de deixar o clima emocional despencar a algo bem angustiante. A porta esbranquiçada da cozinha, que apresentava pequenas rachaduras em sua extremidade, abriu-se lentamente, dando passagem uma adolescente com uma expressão de desanimo estampada em seu rosto jovial.
- Algo de errado hoje, querida? -Perguntou a sua mãe, com aquela voz doce, na esperança que animasse a sua filha. Mas ela mesma sabia que aquilo não adiantaria.
- Eu preciso responder - Ocorreu uma pequena pausa. – Acho que não.
ㅤㅤ Charlize caminhou até a mesa, dali vislumbrando, sobre aquela superfície plana, deliciosos pratos com bolachas, ovos cozidos e fatias de pão e o longo da mobília se estendiam jarras de suco. Tudo obra de sua mãe para que a alegrasse. Infelizmente, Vera não conseguira arrancar um sorriso de Charlize.
- Filha... – Começou Vera, se posicionando ao lado de seu tesouro. - ... Todos nós sabemos que o primeiro dia de aula numa escola diferente é difícil. Você com certeza vai superar.
ㅤㅤ Charlize retrucou, num tom áspero.
- Não é o problema da escola ser diferente, e sim de eu ser diferente, mamãe. Será que você não consegue entender isto?
ㅤㅤ Vera suspirou, profundamente. Sabia á que sua filha se referia ao mencionar sobre ser diferente. Poderia argumentar em seus pensamentos de que nenhuma outra mãe no mundo haveria dado conselhos a uma filha diferente dos outros adolescentes, mas diferente de um modo meio anormal e não considerável pelos olhos de muitos.
ㅤㅤ No final das contas, Vera nunca sabia o que dizer para animar a sua filha.
- Bom, eu tentei. – Se esticou e colou os lábios no rosto de sua filha e a beijou, em seguida se afastando, se locomovendo para a pia, onde adiantou-se e enxugou alguns pratos.
Charlize não se chateou por não ter recebido conselhos ou alguma ajuda emocional de sua mãe. Sabia que ninguém poderia ajudá-la a enfrentar o medo dos outros vê-la como uma “aberração”

ㅤㅤ De olhos fechados, ela pode respirar o delicioso aroma que a natureza trazia para aquela lado da cidade; um cheiro que era levado pelos ventos ao baterem nas folhas das copas das árvores. Por estar com os olhos fechados, Charlize desejou não poder ouvir mais nada – o som angustiante de pessoas reclamando, brigando entre si e tendo conversas intoleráveis, tornava o ambiente melancólico. Algo que não a alegrava.
ㅤㅤ De olhos abertos, ela vislumbrou uma vizinha de aparência rústica, com casas no mesmo formato arquitetônico, mas com pinturas e destaques diferentes dos vizinhos. O Valle dos bons espíritos localizava-se numa parte estratégica da cidade; onde apenas um ônibus fretado passava por aqueles arredores, e também um ônibus escolar. O ambiente parecia ser calmo e hospitaleiro, mas aquela percepção era rapidamente quebrada ao ouvir as constantes brigas familiares que rodeavam aquelas casas. Pobres famílias, sempre vivendo em dificuldades.
O sol se estendia sorrateiramente pelo sul, parecendo constrangido por se esconder atrás de algumas nuvens que, por estarem num tom cinza escuro, aparentavam anunciar uma chuva no fim de tarde. Cada raio de luz que ele emitia parecia dar vida a aquela solo morto e com uma grama num tom verde desbotado. Charlize simplesmente sorrio ao sentir aqueles feixes de luze solar tocar-lhe o corpo. Era uma sensação agradável, que fortificava o seu espírito de uma forma exuberante e encantadora. Se não fosse pelo fato de ser o seu primeiro dia de aula e por enfrentar algumas conseqüências, Charlize poderia se encontrar de paz com a sua vida. Mas sempre há um lado negativo. Em tudo!
ㅤㅤ A mochila já permanecia ajeitada em suas costas. Dentro dela, cadernos, um estojo com os mais variados tipos de lápis e canetas, livros didáticos e alguns objetos de cálculos geométricos. Ela estufou o peito e exalou um longo suspiro, que a principio pareceu ser emitido para acalmar o seu ser. Começou a dispersar seu olhos para as casas vizinhas, onde adolescentes, mais ou menos de sua idade, saiam de suas casas acompanhados com suas mochilas; ambos preparados para o seu dia de aula. Alguns carregavam sorrisos bobos no rosto, por estarem extasiados e animados por saberem quais novidades os aguardariam este ano. Outros davam risadas com seus amigos, com que na qual não os vinham a tempo. Alguns seguiam seus caminhos pela longa calçada iluminada pelos raios solares – onde as sombras das folhas eram projetadas perfeitamente sobre a sua superfície – e a maioria carregavam expressões neutras. Estes sabiam o que os aguardariam, o que enfrentariam e o que haveria de novo para se suportar.
ㅤㅤ Já tendo despedindo-se de sua mãe, Charlize ajeitou a mochila começou a seguir o seu caminho. Pela aglomeração de adolescentes, qualquer um poderia jurar que um estaria a seguir o outro, mas estaria completamente errado. Ambos iam em direção ao lugar onde aguardariam o ônibus escolar.
ㅤㅤ Charlize abaixou a sua cabeça, tentando evitar olhares curiosos que cresciam em sua direção. Era nova na cidade, nova na região, por isso algumas pessoas passaram a olhá-la; praticamente surgiam comentários sobre como ela devia ser, o seu jeito. A maioria dos comentários eram críticos em respeito ao seu jeito de vestir-se: calças longas, roxas e amarrotadas; uma blusa com manga que lhe cobria até as mãos e por baixo uma camiseta branca com uma gola que lhe atingia até a altura do pescoço. Seus cabelos, negros e macios, estavam amarrados no estilo rabo-de-cavalo, supostamente para evitar o vento e a precaução para que eles se esvoaçarem. O jeito de vestir-se de Charlize parecia ser brega, mas cada um com o seu estilo.
ㅤㅤ Charlize começou a ouvir aqueles comentários mais claramente, e tornou a abaixar um pouco a cabeça na tentativa de evitar aqueles olhares. Tentou direcionar pensamentos para seus outro local, antes que aquelas vozes a levariam na loucura. Charlize mostrou-se teimosa e utilizou o seu dom para abrir a sua mente e deixou com que pequenos fiapos de fumaça, quase que transparentes, invadissem a cabeça das pessoas. Queria ouvir o que elas realmente pensavam. O que realmente achavam da nova moradora.
ㅤㅤ Um silêncio predominou ao desligar-se do mundo. O seu corpo ainda mantinha os passos, por contra própria. Charlize apenas focou-se nas vozes que começaram a surgir, a partir de sussurros.
ㅤㅤ “Como ela tem coragem de vir com uma roupa assim para a escola?” “Urgh. Que nojo” “Aluna nova, com o tempo ela toma vergonha e vem com algo mais decente” “O cabelo dela é lindo, mas a roupa” “Essa daí tem cara de maluca. Com certeza não vai durar dois dias na escola”.
As vozes pareceram ficar mais altas e começaram a tomar conta de sua cabeça. Começaram a se amontoar e todos pareciam falar ao mesmo tempo, mais alto. Cada vez mais alto! Estava sendo insuportável!
- CHEGA! – Ela gritou; o seu rosto herdando traços de raiva e ódio.
ㅤㅤ O tom de sua voz pareceu alcançar o ouvido de todos e uma forte brisa se propagou pelo local ao som de sua voz parar de ecoar pelo mais terreno gramado. Os longos cabelos que algumas garotas tinham se ergueram ao sentir aquela brisa e, como se fosse em um filme, desceram em câmera lenta. Os meninos olharam assustados para os cabelos das garotas que ao seu lado estavam. Sacudiam a cabeça incansavelmente, querendo não acreditar no que ocorreu.
ㅤㅤ Charlize sabia das conseqüências que lhe causariam ao invadir a mente de tantas pessoas ao mesmo tempo. Ela não havia treinado para manter aqueles pensamentos num lugar e assim passar a controlá-los. Teria muito o que praticar. Mas o estrago já estava feito.
ㅤㅤ Com o passar dos segundos, ela foi-se acalmando. A raiva e o ódio se dispersou ao sol perder a timidez e mostrar por completo a sua grandeza. Aquelas luzes atingiram Charlize e a fez ceder; acalmar-se. Retornou ao mundo real e agora passou a comandar os seus passos. De cabeça ainda baixo, alguns fios de seus cabelos negros passaram a cair e a tampar ao pouco a visão de seu rosto. Começou a se arrepender de seu erro. No primeiro dia de aula as pessoas começariam a desconfiar de sua anormalidade.
ㅤㅤ Os alunos voltaram a caminhar, agora com passos bem mais largos; demonstravam-se com medo de presenciarem novamente uma cena como a anterior. Todos se movimentaram, para o mais longe possível de Charlize, parecendo formarem um circulo em sua volta.
Uma pessoa, atreveu-se e adentrou naquela circulo da solidão.
- Como você fez isso? - Perguntou. Uma voz feminina, com uma afinidade bem leve.
Charlize assustou-se. Primeiramente por alguém ter vindo falar com ela e depois pela pergunta que seus ouvidos receberam.
ㅤㅤ Ela não desejou responder. Continuou com o seu caminho.
ㅤㅤ A menina, persistente, insistiu dando inicio a uma apresentação amistosa.
- Prazer. Me chamo Brenda. Brenda Tavares.
ㅤㅤ Aquela voz, tão doce, mais quanto o açúcar, pareceu chamar a atenção de Charlize.
ㅤㅤ Demorou alguns segundos, e acabou retribuindo a apresentação.
- Charlize. Mudei-me para cá a pouco tempo. – Sua voz soou melancólica, e quase que inaudível.
ㅤㅤ Brenda pareceu feliz por Charlize ter-se apresentado e escolheu prolongar o assunto, assim retornando com a pergunta anterior.
- Então. Como você fez isso?
Charlize tentou se esquivar.
- Isso o que? Eu apenas gritei.
- Bom, não foi exatamente isso que eu vi... Se quer que eu especifique, vamos lá. Quero que me responda como propagou aquela brisa e como fez para que os cabelos daquelas mocreias caíssem tão devagar?
ㅤㅤ Charlize riu ao Brenda referir aquelas garotas implicantes utilizado o nome “mocreia”. Aquilo fez com que uma ponta de confiança despertasse entre as duas. Então, Charlize respondeu, trazendo junto a si a sinceridade.
- Aquilo foi uma demonstração de ódio. E eu nunca soube controlar, sabe? Sou muito teimosa em utilizar esse meu dom. Mas, nem ligue. Você deve me achar uma louca por estar falando isso. Mas, se não acredite, bote em sua cabeça de que aquilo foi apenas uma mera ilusão causada pela luz do sol e por uma pequena alteração do vento.
ㅤㅤ Agora fora a vez de Brenda da risada. Ela cessou em seguida, agora parecendo bem séria.
- Eu acredito em você. Afinal, parecemos ter o mesmo “problema”.
ㅤㅤ Charlize não entendeu de inicio. Foi só erguer um pouco a sua cabeça e deslumbrar aquelas mãos femininas, com unhas pintadas num tom leve de rosa - choque, que a resposta lhe veio a cabeça.
ㅤㅤ Da mão de Brenda, pequenos cristais de gelo moviam-se entre seus dedos. Pareciam pequenos asteróides brilhantes , que criavam uma brilho azul turquesa pela pele de Brenda. Pareciam ser tão suaves, mas as suas pontas representam o perigo.
ㅤㅤ Eu não sou a única, pensou Charlize. Um sorriso amistoso formou-se em seu rosto.

1 comentários:

Fernanda Ribeiro

*-* Que perfeito, tudo, a escrita, a história.. tudo!!! Um dia quero ter pelo menos metade da sua genialidade!

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